sábado, 19 de janeiro de 2013

O Aleijado da Cadeira de Rodas

   
     Alguns personagens ficam gravados em nossas mentes, sem nem mesmo haver uma explicação lógica para isso. Este é um deles. Moro na periferia, na zona norte, quem conhece sabe que o que mais marca no lugar são as ladeiras, os morros, subidas e descidas sem fim. Minha rua é uma delas, ligando uma parte baixa sujeita a enchente, a um topo urbanizado onde ficam as lojas e o comércio mais disputado por todos os moradores da região, morando quase na metade do percurso entre as duas extremidades, sempre optamos por subir a ladeira, indo para a avenida que fica no alto, raramente descemos, dessa forma é mais fácil ver e conhecer as pessoas que moram na parte de baixo da rua, pois elas passam e retornam o tempo todo, enquanto que as que moram acima não precisam descer.
       Quase todos os passatempos preferidos da molecada, no meu tempo de menino, eram realizados no campinho em frente a minha casa. Lá brincávamos de tudo: pião, pipa, futebol, bolinha de gude, pega-pega, esconde-esconde, pula-mula, etc... Ou simplesmente observávamos o transitar das pessoas, subindo e descendo a rua, o que era também muito divertido!
- Olha! Um moço num carrinho de ferro! Diz apontando o Tuim. Nunca tínhamos visto algo assim: um rapaz moreno, rosto magro, com um cobertor cobrindo da cintura para baixo, numa cadeira com rodas enormes que pareciam pneus de bicicleta, sendo empurrado por um homem grisalho de calça azul marinho e camisa azul clara, que era o uniforme da sabesp. Na realidade o jovem era um cadeirante, termo que então não existia.
- Puxa que legal! Deve ser gostoso passear no carrinho! Disse o Formiga, já levando um peteleco do Dorão, o mais velho do grupo, que emenda:
- Que burro ce é Formiga! Num vê que o cara é aleijado e o carrinho é uma cadeira-de-rodas, ele num anda como a gente não!
- Por que que ele não anda? Indaga o Tuim.
- Sei lá! Vai perguntar pra ele. Responde o Dorão, sabendo que ele não iria, tímido como todos nós, jamais abordávamos ninguém, a não ser as pessoas que já conhecíamos.
       Depois deste dia, acostumei-me a ver o aleijado em sua cadeira-de-rodas quase todos os dias, sempre empurrado rua acima por pessoas diferentes que vinham da mesma direção, virando um fato corriqueiro. Ele subia a rua empurrado, e descia velozmente sozinho, no caminho de volta, algum tempo depois. O que ele fazia, aonde ele ia, quem eram as pessoas que o empurravam, onde morava, quem ele era, enfim, jamais tive qualquer curiosidade em saber algo a seu respeito, ele era do bairro e isto bastava para o tornar familiar. Além do mais, quando as crianças precisavam saber algo, acabavam descobrindo, e qualquer novidade era comentada e divulgada por todos, se não era comentado não existia. Sempre que o via, vinha na lembrança a frase do Dorão a seu respeito: "O cara é aleijado, ele não anda como a gente!". Eu ficava com um pesar, uma sensação de pena, indagando a mim mesmo o porque das coisas que o destino nos impunha, mas passava rápido! Um menino curioso e ávido nunca tem tempo para cismar, as coisas acontecem aos montes,
em casa, na escola, na rua, no campinho...
       Tempos depois, quando entrei na sétima série do primeiro grau, passei a estudar à noite, pois não havia classe diurna da sétima série na escola que frequentava, mas não era problema, pois vários colegas estavam na mesma situação, e como andávamos em bando, íamos e voltávamos junto. Neste grupo de jovens do curso noturno, eu era o mais novo porque entrei na escola com seis anos, estando com doze na época que comecei a estudar a noite, alem disso, um dos que morava mais longe da escola, cujo caminho começava com a descida da minha rua, passava por uma rua plana, perpendicular a minha e que margeava um córrego e depois terminava com uma longa subida, idêntica a descida inicial, de forma que eu descia, andava uma rua plana e novamente subia até a escola. Nosso grupo de retorno era especialmente importante, já que quando voltávamos, já era por volta das vinte e três e trinta e após a meia noite tudo ficava deserto e escuro (me lembro muito bem do meu primeiro contato com um mal-feitor, mas isto eu conto depois...). Um pouco acima da minha casa moravam os últimos alunos. Dois irmãos: Jeremias e Robson, seus apelidos eram Doidim e Cojé, (todos tinham apelidos, assim como o meu era Sabugo), de forma que na volta da escola, no último percurso que era a subida da minha rua, sobravam do grupo inicial de retorno somente eu, Doidim e Cojé, os demais colegas moravam todos mais abaixo e despediam-se antes. A subida era sempre rápida e alegre pois vinhamos brincando e rindo, embora cansados da longa caminhada.
       Um dia, no final da última aula, me atrasei ouvindo um sermão do inspetor de alunos que me flagrou atirando uma bolinha de papel  no cocuruto de uma colega da minha sala, ele me segura pelo braço e brada:
- Cooomoo! É assim na sua casa?! Eu deveria fazer você comer este papel! Cata já! Sem dizer um pio, eu peguei o papel e rapidamente enfiei no bolso, mas ele não se contentou, continuando:
- Graças a atitudes como esta, esta escola está sempre suja! Os serventes não vencem limpar! Blá blá blá ! Blá blá blá!... Blá blá blá... Falava sem parar e eu sinceramente só ouvia o blá blá blá e via seu lábios mexendo, preocupado que estava em voltar para casa  junto com meus amigos. Finalmente ele me liberou, mesmo porque ele também tinha um longo caminho a percorrer. Saí em disparada, desci a ladeira da escola correndo como podia, já que carregava os livros e cadernos em baixo do braço, dentro de um saco plástico, presos em uma prancheta. Quando alcancei a rua plana lá embaixo, nem sinal dos colegas mas ao dobrar a esquina, alguém me chama:
- Ei irmãozinho, boa noite! Olho para traz e vejo o aleijado da cadeira-de-rodas vindo rápido em minha direção.
- Oi! Boa noite. Respondo, continuando a andar.
- Você mora lá pra cima, não é? Ele diz, ficando lado a lado comigo.
- Sim, mas não tão lá em cima, moro na metade da rua, onde começa a ficar mais suave a ladeira...Disse sem imaginar aonde a conversa chegaria, ainda procurando avistar meus amigos no caminho de volta. Apertando o passo, logo cheguei a minha rua, o rapaz que poderia facilmente ir mais rápido em sua cadeira, continuava lado a lado comigo, até começarmos a subida, quando ele me diz:
- Então amiguinho, não dá pra você me ajudar a subir? Eu preciso muito ir lá em cima, e agora não tem ninguém além de você na rua... Argumentava ele.
- Eu não posso levar você até lá na avenida, já estou atrasado! Minha mãe deve estar preocupada, preciso voltar rápido para casa... Disse já perdendo a esperança de encontrar  Doidim e  Cojé.
- Sem problema, se você me ajudar a chegar até a sua casa já quebra meu galho, de lá até a avenida eu me arranjo sozinho. Retruca ele, receoso e apreensivo eu concordo:
- Tudo bem, então eu vou tentar... Me posiciono atrás dele e segurando em um cano que compunha a parte superior da cadeira, lá vou eu, exercendo uma função que eu só via de longe outros fazerem. No começo, parecia fácil, levíssima, a cadeira deslizava suave sobre os pneus de borracha, e eu empurrava só com uma mão, na outra segurava meus livros e cadernos. Quando, passando ao lado de um bar que estava aberto, ele me pede para parar e olhando para o interior do bar e acena ao mesmo tempo que grita:
- Faaalaa aee, cambada! Lá de dentro dois sujeitos saem para fora gargalhando, um deles grita de volta:
- Passeando de novo, heim malandro! Ele então grita de volta:
- Sóóó! Já-já eu tô de volta! Quero rolá uma ideia co'ceis!! Me espera aeee! Eu que estava ansioso por chegar logo em casa, nem esperei as respostas dos sujeitos do bar e continuei a empurrar a cadeira, e logo adiante, dado ao aclive tornar-se mais íngreme a cadeira vai ficando mais pesada, o que me leva a ter que fazer uma força absurda para desloca-la. O aleijado percebendo minha dificuldade, pede a minha prancheta para que eu use as duas mãos, o que faço incontinente, pois já o suor escorria no rosto... Vejo por sobre os seus ombros que ele a encobre com as mãos, por debaixo do cobertor que recobre suas pernas. Eu já não aguentava mais o esforço e cada passo agora era um martírio, minhas pernas doíam, a respiração estava tão ofegante que eu já não podia sequer falar, entretanto continuo resoluto, vou levá-lo até a altura da minha casa, conforme combinamos! Ao vencer a parte mais aguda da subida, ficando a cerca de cinquenta metros da minha casa ele me pede para parar:
- Aqui já tá bom! Muito obrigado irmãozinho! Não entendendo mais nada, mas feliz pelo fato de não ter que  empurra-lo mais,  retiro do seu colo a minha prancheta e depois solto a cadeira. Ele agilmente faz uma curva e... Desce em disparada! Soltando um grito:
- Ieeebaaaaaaaa! Atônito, eu vejo ele parar na frente do bar lá embaixo festejando alegremente com os dois sujeitos... Percebo que meus livros e cadernos foram vasculhados, ele inclusive rasgou o saco plástico que protegia o material caso chovesse. Eu era apenas um garoto e apesar de ficar ofendido, senti um certo orgulho de ter vencido a subida, não tive tempo de sentir raiva do aleijado, estava atrasado e só queria chegar em casa... Andando lentamente, recobrando o fôlego eu pensava "o cara é aleijado, ele não anda como a gente".


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