segunda-feira, 30 de julho de 2012

Quermesse

Junho é mês de festa! São João, São Pedro e Santo Antônio são festejados com fogueira, quentão, pipoca, batata doce, milho verde e muitos outros quitutes, nas noites frias da periferia de São Paulo. Nas casas com quintal a tradição ainda se mantem, mas está acabando, pois a cada ano o espaço diminue e os mais humildes ficam só na empolgação, ou se aventuram nas quermesses. Em escolas, igrejas ou até mesmo nas ruas, que são fechadas ao trafego viram palco para a festança! O que não falta são histórias vivenciadas nesta época... Ávidos por diversão a molecada está empolgada, é noite de São João, é sábado e vamos a caça de quermesses e fogueiras pelos bairros vizinhos, em turma de mais de quinze, as idades entre treze e vinte anos, saímos de banho tomado e roupa de domingo, esperando encontrar meninas e comer quitutes saborosos. A maioria vai sem um tostão no bolso, só na "serra", mas sempre todos acabam comendo alguma coisa, já que tudo é dividido, como se fossemos todos uma só família, os mais velhos cuidando dos mais novos...Desta vez saímos para o bairro de vila Rosa, indo a pé, é uma longa caminhada, mas o Pinguinha disse que é a melhor festa de todas! Ele que descobriu este lugar, onde mora um colega trabalho. Incrustado no pé da serra, quase interior, vamos a passos largos ansiosos por chegar a melhor festa do ano, seguimos por uma longa avenida, que liga o bairro do Horto a vila Rosa, alias a única forma de acesso ao local, depois de muito caminhar chegamos ao portão da igreja, realmente está lotado, com tudo que queríamos. Muitas meninas lindas, fogueira, pipoca, bolo de milho, vinho quente, e muito mais. Alem disso o  "correio elegante", que é a melhor forma de cortejar as meninas e com sorte ganhar um beijo e ser alvo dos comentários a semana inteira.
  Todos muito tímidos, ficamos do lado de fora esperando alguém tomar a iniciativa, que como sempre foi do Mael, o mais indolente de todos, que diz: -Vou entrar nesta birosca, dar um rolê lá dentro e ver se é tudo isto que o Pinguinha disse pra gente! Quem vai comigo? O Sapão e o próprio Pinguinha, que se sentiu provocado, retrucam: - Eu vou! - Eu vou! Os demais ficaram esperando, olhando as meninas e conversando entre si, até se familiarizar com o local.
  Eu, depois de um certo tempo, comecei a olhar em volta e percebi uma agressividade nos olhares dos jovens do local para conosco, deduzi que era porque as meninas estavam dando bola pra gente e alguns de nós envaidecidos ficavam salientes e riam alto, se vangloriando...Eu nem estava a fim de entrar, pois não cabia mais ninguém! Estava muito lotado, e as filas eram enormes, restava a opção de esperar parte das pessoas irem embora para aproveitarmos um pouco a festa. Nesta altura, os valentes do bairro já haviam identificado os "invasores" da vila Amália e estávamos sendo vigiados sutilmente, qualquer deslize seria motivo para uma retaliação aumentada. Mesmo sem saber disso naquela época, todos nos sentíamos a nossa fragilidade e confiávamos na humildade e cordialidade que sempre partilhávamos com os estranhos e na maioria das vezes nos dávamos bem, entretanto... Mael, Sapão e Pinguinha retornam para o grupo principal, que ficou esperando no portão, Mael é o primeiro a falar: - Meu, as mina tão muito loca! Parece que não tem homem neste lugar! Cê viu, Sapão, aquela morena quase quebrou o pescoço quando eu passei! Os cara daqui tão puto da vida! Após o que soltou uma gargalhada. - Fica frio, Mael! Disse o Sapão. - Os cara já filmaram a gente, e as mina vão arrumá pra nossa cabeça! Cê acha que estas mina não tem namorado? E se algum deles tá interessado numa delas? Tá loco! O Pinguinha, que se atrasou um pouco, preso na multidão, entra na conversa: - Meu sujô, o mano lá do meu trampo me ligou que os camarada dele tão a fim da gente! É melhor a gente não vacilá! Vamô fica frio e curtir as brincadeiras, sem entrar numas com as mina daqui, senão vai sobrá pra gente! Retrucando o Mael diz: - Meu eu quero é mais! Num vô perde a oportunidade de trocar umas ideias com esta morena da hora! 
Foi só ele falar isto e um rapaz deu um empurrão com o peito nas costas dele, que fez com que ele parasse de falar, outro que vinha logo atras, fez o mesmo, e ele que não era bobo nem nada, percebeu que apesar da falta de espaço devido a superlotação, aquilo era uma provocação. Ele então ficou olhando de soslaio para o grupo que se formou ao lado do nosso, encarando-nos. Eu, já temendo pelo pior, falei: -Sem chance cara, num vai da pra nóis não! A gente tá muito longe de casa! Olhei pra cara do maluco e ele tá irado! Além disso tá todo mundo olhando com cara feia pra gente! Parece que a gente é bandido! Talvez se fossemos eles nem ligavam pra gente, mas... Ceis que sabe, eu por mim saia fora é já! 
Bem na verdade eu estava com medo mesmo, e conhecendo o Mael como conhecia, estava prevendo o pior, e era melhor darmos o fora e encontrarmos uma fogueira ou quermesse mais próxima de casa, salvando esta linda noite de sábado. O Rato, que até então não havia dito nada, se pronunciou: - É o Ilsão tá certo! Esta festa tá muito cheia, as coisa tão muito cara e a caminhada é longa, quanto mais cedo a gente sair daqui, melhor! 
Saímos da frente da igreja e fomos para a avenida, eu já contando todo mundo para não perder ninguém. A avenida estava bem movimentada e a calçada cheia de jovens, como nós, que de lá observavam o movimento da quermesse, olhei para o portão da igreja e vi o grupo que estava reagindo ao nosso, e percebi que eles estavam satisfeitos, como se tivessem ganho um jogo de futebol, eu e os demais amigos que estavam comigo, só pensava em ir para casa.
Foi quando um fusquinha azul "calcinha" que vinha pela avenida bem devagarinho, até se aproximar uns trinta metros de nós arrancou, cantando os pneus e acelerando alto, parecia querer arremeter-se contra todos os pedestres, e principalmente o nosso grupo, que estava mais próximo! Instintivamente, e muito rápido, nos escondemos atrás de uma caminhonete parada na calçada, o fusquinha até derrapou ao passar, por pouco aqueles que estavam mais para o meio da avenida, entre eles eu mesmo, não foram atropelados! Eu senti o vento sugar o pano da minha calça, ao me encostar bem colado ao para-lama da caminhonete, certamente o doido que estava ao volante, para não amassar seu lindo fusquinha, recolheu um pouco, o suficiente para que eu me livrasse de ser atingido...
Indignados, queríamos reagir contra esta atitude covarde e insensata, e o Rato, que era o mais velho, além de estar cheio de moral, pois acabara de dar baixa no exército, servindo como P.E. (polícia do exército), toma a frente e abrindo os braços sai para cima do fusca, gritando: - Qualé que é!? Cê tá maluco! Quem você pensa que é!
E pra gente ele diz: -Lá no quartel eu aprendi com o sargento como lidar com estes folgados! A gente não pode dar boi, não! Vamo mostra pra ele! 
Todos estávamos tão ofendidos, que apoiamos imediatamente a ideia de dar um susto no maluco, para ele ver com quem estava lidando. E com o Rato a frente, íamos até o fusca, que para logo adiante, junto ao portão da igreja. Quando o Rato chega bem perto do fusca, pela lateral do motorista, ele sai do carro. Um cara enorme, (pelo menos parecia) de cabelo black-power, branco, com a cara de ódio num olhar vermelho "maconha", ao mesmo tempo que grita: -Qualé que é o que?! Seu filho-da-puta! Vai abrindo a jaqueta para sacar um revólver. O Rato, que a esta altura tinha virado o líder do grupo, e que estava a frente, se vira e vemos seu rosto aterrorizado, os olhos arregalados e a língua de fora, grita: -Cooooorre! Apesar do pânico geral, todos vimos da gravidade da situação, e corremos... Um bando de jovens e meninos, correndo para não levar um tiro, numa avenida cercada por muros altos e que parecia não ter fim. Pelo lapso de tempo entre perceber a ação e agir, aqueles que estavam mais atras ficaram por último,  o Rato sumiu na frente! Eu me lembro que o Simão estava logo a minha frente e me imaginava com sendo o último da fila, logo seria o primeiro a levar um tiro nas costas, então me vi numa corrida pela vida, ao tentar ultrapassar o maior numero de amigos que pudesse, mas parece que eles pensavam da mesma forma! Finalmente, no alto de uma ladeira, havia uma esquina, onde estavam parados Pinguinha, Rato, Mael (?), Sabonete e Sapão, eu que havia ultrapassado o Simão, chego depois destes, todos ofegantes e descontrolados! Para encurtar a história, após conferirmos a integridade do grupo, e de espantarmos uma família inteira que estava reunida na sacada de uma casa naquela mesma rua apenas com a nossa presença, percebemos que o Doido do fusquinha não veio atras da gente, se satisfez apenas com o susto que nos deu, além do que, pra quem viu a cena, ele mostrou que era mesmo muito "valente"... Depois de recuperar a respiração, mas sem deixar de ouvir as pancadas que davam o coração descompassado, lembro de ouvir um elogio dado pelo Simão: - Ce corre prá caramba heim Alemão!!! Eu retruquei: Corremos!