A Periferia de São Paulo, fatos do cotidiano, contos, poemas, histórias com "H" e estórias com "E" mesmo...
segunda-feira, 6 de maio de 2013
História de Bar
O bar do seu Alcides era como um clube, seus frequentadores deveriam possuir carteirinha de sócio, tamanha a fidelidade da clientela. Eu com um de seus "sócios", presenciei várias histórias ocorridas lá, esta é uma delas...
Gasparzinho trabalhava como pedreiro em uma obra ali pertinho, trazido e apresentado ao bar pelo seu patrão, o seu Nestor, morador do bairro, mestre de obras e cliente diário do seu Alcides, já Gaspar, um sujeito baixinho e com cara de "invocado", só aparecia aos sábados, dia de sua folga e dia de "encher a cara" antes de ir para sua casa (ele passava a semana toda na obra, só indo para casa no sábado à tarde). Tinha este apelido porque era baixinho e careca, apesar de ter em torno de trinta e cinco anos, parecia um menino gordinho e rechonchudo! Era um bom jogador de bilhar, mas só enquanto estava sóbrio, o que durava mais ou menos uma meia hora, até que ele ingerisse umas três doses de cachaça. Era muito simpático a despeito da sua aparente cara de invocado, fazia amizade facilmente. Dizia à todos que era um mestre na capoeira, mas só usava suas habilidades em último caso pois tinha muita humildade e respeito pelas "pobres pessoas indefesas" (como tratava os demais). Se acostumou a chamar todo mundo que conhecia e queria bem de "doido", via um amigo que passava de carro ou moto e gritava:
- E aeeee Doidoooo! Se seu telefone tocava, ele atendia assim, alegremente:
- Fala doidoooo! Num destes sábados, após ter bebido além das três doses que o deixavam alterado, fora do seu comportamento normal, Gasparzinho, com seu celular pré-pago sem créditos resolve ligar para um amigo do orelhão que ficava um pouco acima na mesma rua do bar, interrompendo o jogo (estava jogando bilhar), neste exato momento, entra no bar um rapaz chamado André, com mais ou menos vinte anos de idade, filho de seu Jesus, um empresário e morador bem respeitado no bairro. André vive a base de remédios para controle de neuroses que trata desde sua entrada na adolescência, e ficou conhecido como uma pessoa alienada e solitária, principalmente pela cara de mau que sempre mostra em público. Nunca saia de casa, exceto quando ia ao bar comprar um único cigarro e curiosamente uma paçoquinha...
Neste dia de sábado havia um bom movimento no bar: Seu Edgar, aposentado da Eletropaulo, Jorginho, o futuro genro do Seu Alcides, um rapaz valentão e forte que sempre dizia que não levava desaforos para casa, eu é claro e mais um punhado de pessoas que que assistiam o bilhar, enquanto bebericavam. Gasparzinho jogava bilhar contra mim, e quando ele parou para ir até o orelhão eu fui ao balcão para saborear minha cerveja. André termina sua paçoquinha e sobe a rua fumando seu cigarro, não demora nem um minuto e o Gasparzinho entra no bar com a mão na boca como se estivesse segurando os dentes... Havia levado um soco direto na boca desferido pelo André (que todos chamavam pelas suas costas de "Mocorongo"). Acontece que o Gaspar, como eu já havia dito gostava de chamar todo mundo de doido e quando o André passou por ele subindo a rua, estava cumprimentando seu amigo ao telefone assim:
- Fala aee, seu doidooo! O André pensando que era com ele foi tirar satisfações:
- Me chamou de que? E o Gasparzinho ao telefone:
- Peraí doido, tem um maluco aqui enchendo o saco, depois eu te ligo.
- Maluco?! Seu Filho da Puta! Retruca o André e póów na cara do pobre Gasparzinho, que depois disso não conseguia falar mais nada voltando rápido ao bar, branco como cera, sem sequer conseguir balbuciar o que havia acontecido. O André reaparece logo depois, gritando para o Gasparzinho:
- Repete! Repete, se você tem coragem! Nisto o Jorginho fingindo receber uma ligação, sai do bar indo para a casa da sua noiva e o seu Edgar indignado diz para o André:
- Menino, que cô cê pensa que tá fazeno?! Quero vê ocê faze argum már pr´este rapaz na minha frente, prô ce vê! Após o que o André emendou um tremendo pontapé na bunda do Gasparzinho, desta vez com todos os fregueses do bar como testemunhas, que cai no chão, estatelado. Quando ele se levanta, amparado por mim, eu percebo que não haverá reação, pois apesar do que dizia: "sou mestre de capoeira", o Gasparzinho ficou paralisado pelo medo... Eu escondo o Gaspar atrás de mim e grito para o Mocorongo:
- Meu Acorda! Ele chama todo mundo de doido, e você pensou que ele tava falando com você, mas ele não tava, só tava falando com alguém no telefone!! O Gaspar, balançando a cabeça retruca, sussurrando:
- Isso,isso... Foi assim mesmo... Quando o André Mocorongo passa sua atenção para mim e começa a me encarar ameaçadoramente, seu pai e sua mãe chegam afobados, avisados pelo seu Alcides, que ligou para eles. O sangue nas roupas do Gaspar e no chão do bar, fazem com que os pais fiquem muito emocionados e seu Jesus pede satisfações ao filho:
- O que foi desta vez! Que é que você aprontou André?? E a mãe continua:
- Que desgosto! Meu filho, por que isto! Quanta vergonha! E olhando para os demais:
- Este menino tem causado muitas dores em nossa casa, eu rezo muito prá que ele se endireite... Levamos no médico e nada! Só Deus mesmo... Não se contendo mais, começa a chorar. O André, acabrunhado pela presença dos pais, e querendo justificar seus atos me envolve na sua defesa:
- Fala ai pra eles! Ele me xingou, não foi? Xingou ou não xingou? Diz ai! E Eu:
- Não xingou não, você que imaginou tudo isso! Ao ser contrariado, o rapaz fungava alto e me encarava. Mas seu pai, já impaciente, determina:
- Não xingou não! Você que vive vendo fantasmas, já pra casa agora! Ele então abaixa a cabeça e choraminga:
- Ninguém acredita no que eu falo... Sua mãe pega o André pelo braço e leva-o embora. Enquanto seu Jesus fica para tentar resolver a situação:
- Moço pode deixar que eu vou leva-lo ao dentista e pagar todos os custos que você tiver com os remédios! Nesta hora eu intervi:
- É Gasparzinho cê precisa ir com o seu Jesus agora, seu caso é de reimplante, quanto mais tempo demorar pior é! Sem muitas delongas ele entra no fusquinha do Seu Jesus, que o leva ao dentista, pois seus dentes estavam moles e sangrando...
Pego minha cerveja e me sento na mesa de sinuca, tentando relaxar novamente e aproveitar o sabadão de sol. É quando reaparece o Jorginho, que ouve a narração dos fatos recentes pelo pessoal que retorna para dentro do bar, após Gasparzinho e seu Jesus terem saído. O Jorginho estufa o peito e olhando pra mim diz:
- Cara cê eu to aqui esse mocorongo ia vê! Ele sabe com quem mexe! Comigo não! Neurótico ou não eu não dô boi pra xarope! Nisso eu avisto o André descendo a rua de novo, o Jorginho acompanhando meu olhar diz:
- Hiiiii caramba... Lá vem o doido de novo! Eu me conheço e sei que não vai prestar eu ficar aqui. Fala e vai descendo a rua indo para sua casa mais abaixo, já que a casa da sua noiva ficava para o lado de cima, onde ele cruzaria com o André... Os "sapos" esvaziam novamente o bar, ficando Eu, Seu Edgar e Seu Alcides. O André chega, olha fixo nos meus olhos e entra, pede um cigarro e uma paçoquinha, paga e sobe a rua comendo seu doce. Seus Alcides olha pra mim e diz:
- Já pensou se o André te ataca? E você fica ai, calmo e sossegado... E eu após terminar minha cerveja replico:
- Bem, se ele me ataca o seu Jesus teria gastos muito maiores com o dentista... E emendo:
- Manda mais uma cervejinha, bem gelada!
sábado, 19 de janeiro de 2013
O Aleijado da Cadeira de Rodas
Alguns personagens ficam gravados em nossas mentes, sem nem mesmo haver uma explicação lógica para isso. Este é um deles. Moro na periferia, na zona norte, quem conhece sabe que o que mais marca no lugar são as ladeiras, os morros, subidas e descidas sem fim. Minha rua é uma delas, ligando uma parte baixa sujeita a enchente, a um topo urbanizado onde ficam as lojas e o comércio mais disputado por todos os moradores da região, morando quase na metade do percurso entre as duas extremidades, sempre optamos por subir a ladeira, indo para a avenida que fica no alto, raramente descemos, dessa forma é mais fácil ver e conhecer as pessoas que moram na parte de baixo da rua, pois elas passam e retornam o tempo todo, enquanto que as que moram acima não precisam descer.
Quase todos os passatempos preferidos da molecada, no meu tempo de menino, eram realizados no campinho em frente a minha casa. Lá brincávamos de tudo: pião, pipa, futebol, bolinha de gude, pega-pega, esconde-esconde, pula-mula, etc... Ou simplesmente observávamos o transitar das pessoas, subindo e descendo a rua, o que era também muito divertido!
- Olha! Um moço num carrinho de ferro! Diz apontando o Tuim. Nunca tínhamos visto algo assim: um rapaz moreno, rosto magro, com um cobertor cobrindo da cintura para baixo, numa cadeira com rodas enormes que pareciam pneus de bicicleta, sendo empurrado por um homem grisalho de calça azul marinho e camisa azul clara, que era o uniforme da sabesp. Na realidade o jovem era um cadeirante, termo que então não existia.
- Puxa que legal! Deve ser gostoso passear no carrinho! Disse o Formiga, já levando um peteleco do Dorão, o mais velho do grupo, que emenda:
- Que burro ce é Formiga! Num vê que o cara é aleijado e o carrinho é uma cadeira-de-rodas, ele num anda como a gente não!
- Por que que ele não anda? Indaga o Tuim.
- Sei lá! Vai perguntar pra ele. Responde o Dorão, sabendo que ele não iria, tímido como todos nós, jamais abordávamos ninguém, a não ser as pessoas que já conhecíamos.
Depois deste dia, acostumei-me a ver o aleijado em sua cadeira-de-rodas quase todos os dias, sempre empurrado rua acima por pessoas diferentes que vinham da mesma direção, virando um fato corriqueiro. Ele subia a rua empurrado, e descia velozmente sozinho, no caminho de volta, algum tempo depois. O que ele fazia, aonde ele ia, quem eram as pessoas que o empurravam, onde morava, quem ele era, enfim, jamais tive qualquer curiosidade em saber algo a seu respeito, ele era do bairro e isto bastava para o tornar familiar. Além do mais, quando as crianças precisavam saber algo, acabavam descobrindo, e qualquer novidade era comentada e divulgada por todos, se não era comentado não existia. Sempre que o via, vinha na lembrança a frase do Dorão a seu respeito: "O cara é aleijado, ele não anda como a gente!". Eu ficava com um pesar, uma sensação de pena, indagando a mim mesmo o porque das coisas que o destino nos impunha, mas passava rápido! Um menino curioso e ávido nunca tem tempo para cismar, as coisas acontecem aos montes,
em casa, na escola, na rua, no campinho...
Tempos depois, quando entrei na sétima série do primeiro grau, passei a estudar à noite, pois não havia classe diurna da sétima série na escola que frequentava, mas não era problema, pois vários colegas estavam na mesma situação, e como andávamos em bando, íamos e voltávamos junto. Neste grupo de jovens do curso noturno, eu era o mais novo porque entrei na escola com seis anos, estando com doze na época que comecei a estudar a noite, alem disso, um dos que morava mais longe da escola, cujo caminho começava com a descida da minha rua, passava por uma rua plana, perpendicular a minha e que margeava um córrego e depois terminava com uma longa subida, idêntica a descida inicial, de forma que eu descia, andava uma rua plana e novamente subia até a escola. Nosso grupo de retorno era especialmente importante, já que quando voltávamos, já era por volta das vinte e três e trinta e após a meia noite tudo ficava deserto e escuro (me lembro muito bem do meu primeiro contato com um mal-feitor, mas isto eu conto depois...). Um pouco acima da minha casa moravam os últimos alunos. Dois irmãos: Jeremias e Robson, seus apelidos eram Doidim e Cojé, (todos tinham apelidos, assim como o meu era Sabugo), de forma que na volta da escola, no último percurso que era a subida da minha rua, sobravam do grupo inicial de retorno somente eu, Doidim e Cojé, os demais colegas moravam todos mais abaixo e despediam-se antes. A subida era sempre rápida e alegre pois vinhamos brincando e rindo, embora cansados da longa caminhada.
Um dia, no final da última aula, me atrasei ouvindo um sermão do inspetor de alunos que me flagrou atirando uma bolinha de papel no cocuruto de uma colega da minha sala, ele me segura pelo braço e brada:
- Cooomoo! É assim na sua casa?! Eu deveria fazer você comer este papel! Cata já! Sem dizer um pio, eu peguei o papel e rapidamente enfiei no bolso, mas ele não se contentou, continuando:
- Graças a atitudes como esta, esta escola está sempre suja! Os serventes não vencem limpar! Blá blá blá ! Blá blá blá!... Blá blá blá... Falava sem parar e eu sinceramente só ouvia o blá blá blá e via seu lábios mexendo, preocupado que estava em voltar para casa junto com meus amigos. Finalmente ele me liberou, mesmo porque ele também tinha um longo caminho a percorrer. Saí em disparada, desci a ladeira da escola correndo como podia, já que carregava os livros e cadernos em baixo do braço, dentro de um saco plástico, presos em uma prancheta. Quando alcancei a rua plana lá embaixo, nem sinal dos colegas mas ao dobrar a esquina, alguém me chama:
- Ei irmãozinho, boa noite! Olho para traz e vejo o aleijado da cadeira-de-rodas vindo rápido em minha direção.
- Oi! Boa noite. Respondo, continuando a andar.
- Você mora lá pra cima, não é? Ele diz, ficando lado a lado comigo.
- Sim, mas não tão lá em cima, moro na metade da rua, onde começa a ficar mais suave a ladeira...Disse sem imaginar aonde a conversa chegaria, ainda procurando avistar meus amigos no caminho de volta. Apertando o passo, logo cheguei a minha rua, o rapaz que poderia facilmente ir mais rápido em sua cadeira, continuava lado a lado comigo, até começarmos a subida, quando ele me diz:
- Então amiguinho, não dá pra você me ajudar a subir? Eu preciso muito ir lá em cima, e agora não tem ninguém além de você na rua... Argumentava ele.
- Eu não posso levar você até lá na avenida, já estou atrasado! Minha mãe deve estar preocupada, preciso voltar rápido para casa... Disse já perdendo a esperança de encontrar Doidim e Cojé.
- Sem problema, se você me ajudar a chegar até a sua casa já quebra meu galho, de lá até a avenida eu me arranjo sozinho. Retruca ele, receoso e apreensivo eu concordo:
- Tudo bem, então eu vou tentar... Me posiciono atrás dele e segurando em um cano que compunha a parte superior da cadeira, lá vou eu, exercendo uma função que eu só via de longe outros fazerem. No começo, parecia fácil, levíssima, a cadeira deslizava suave sobre os pneus de borracha, e eu empurrava só com uma mão, na outra segurava meus livros e cadernos. Quando, passando ao lado de um bar que estava aberto, ele me pede para parar e olhando para o interior do bar e acena ao mesmo tempo que grita:
- Faaalaa aee, cambada! Lá de dentro dois sujeitos saem para fora gargalhando, um deles grita de volta:
- Passeando de novo, heim malandro! Ele então grita de volta:
- Sóóó! Já-já eu tô de volta! Quero rolá uma ideia co'ceis!! Me espera aeee! Eu que estava ansioso por chegar logo em casa, nem esperei as respostas dos sujeitos do bar e continuei a empurrar a cadeira, e logo adiante, dado ao aclive tornar-se mais íngreme a cadeira vai ficando mais pesada, o que me leva a ter que fazer uma força absurda para desloca-la. O aleijado percebendo minha dificuldade, pede a minha prancheta para que eu use as duas mãos, o que faço incontinente, pois já o suor escorria no rosto... Vejo por sobre os seus ombros que ele a encobre com as mãos, por debaixo do cobertor que recobre suas pernas. Eu já não aguentava mais o esforço e cada passo agora era um martírio, minhas pernas doíam, a respiração estava tão ofegante que eu já não podia sequer falar, entretanto continuo resoluto, vou levá-lo até a altura da minha casa, conforme combinamos! Ao vencer a parte mais aguda da subida, ficando a cerca de cinquenta metros da minha casa ele me pede para parar:
- Aqui já tá bom! Muito obrigado irmãozinho! Não entendendo mais nada, mas feliz pelo fato de não ter que empurra-lo mais, retiro do seu colo a minha prancheta e depois solto a cadeira. Ele agilmente faz uma curva e... Desce em disparada! Soltando um grito:
- Ieeebaaaaaaaa! Atônito, eu vejo ele parar na frente do bar lá embaixo festejando alegremente com os dois sujeitos... Percebo que meus livros e cadernos foram vasculhados, ele inclusive rasgou o saco plástico que protegia o material caso chovesse. Eu era apenas um garoto e apesar de ficar ofendido, senti um certo orgulho de ter vencido a subida, não tive tempo de sentir raiva do aleijado, estava atrasado e só queria chegar em casa... Andando lentamente, recobrando o fôlego eu pensava "o cara é aleijado, ele não anda como a gente".
Assinar:
Postagens (Atom)